O Céu de Ícaro

Porque o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu

La Vie En Rose (Capítulo 3)

Veja aqui o capítulo 2


Ela



Cinco dias em Paris... e três meses desde minha visita ao inferno. Aquela viagem, de fato, estava sendo o bem que me trazia à superfície. Eu acreditava que aquilo já havia me tirado do poço infinito de minha desolação, eu acreditava que esses dias na Europa me fariam retornar aos poucos para minha vida comum, que aquilo me faria começar a ser novamente alguém que merecesse respirar o ar que entravam por suas narinas. Eu estava errado. O resultado seria muito mais drástico e benéfico do que eu poderia ter imaginado.
Minha segunda parada seria Londres. Sempre quis conhecer a capital britânica, com seus pubs, sua história e sua modernidade, mas eu não sabia que eu não iria aproveitar o que a cidade poderia me oferece. Não, caro leitor, não foi minha depressão voltando a me assolar, não, o motivo foi algo radical que me aconteceu. Na verdade, alguém. E esse alguém é o motivo de eu estar escrevendo estas palavras tortas.
Cheguei à Gare du Nord por volta das 18:45, pois o trem para Londres partiria às 20:00. Esperei no saguão principal durante um tempo, li algumas revistas, comprei uma barra de chocolate e respirei pela última vez o ar da Cidade Luz.
No horário determinado, entrei no vagão, sentei em uma poltrona e esperei. Naquele momento, aquela poltrona vazia à minha frente não parecia especial, na verdade, ela já estava um pouco gasta e possuía cores dissonantes, mas hoje, relembrando tudo o que viria a seguir, tenho vontade de arrancar aquela poltrona e guardar como um monumento à vida, à minha vida, à vida que se iniciou ali.
O trem já havia começado a se movimentar quando ela passou por mim. A figura dela possuía algo diferente, algo... desculpe, leitor, mas não posso descrever com palavras, então tentarei explicar de um modo que você tenha uma noção de como me senti. Você já se apaixonou à primeira vista? Bem, isso já começa a explicar como me senti, mas ainda não é isso. Eu senti como se eu visse alguém que eu já conhecia há tempos, mas nunca havia encontrado, alguém que me inspirava paz e inquietação ao mesmo tempo, mas não era exatamente paixão, não ainda, era como se eu sentisse uma tranquilidade inquietante, uma paz perturbadora, um arrepio incomum na alma... enfim, na minha frente estava a pessoa que mudaria minha vida para sempre.
Ela passou ao meu lado com um ar de alegria estranhamente contagiante. Sim, o simples fato de ela passar ao meu lado já me acalmou, não sei se foi seu perfume, sua beleza, ou apenas algo que emanava de dentro dela, mas, acredite, era contagiantemente tranquilizador.
Ela sentou-se à minha frente. Confesso que fiquei meio desconsertado, eu não esperava sequer ter a chance de respirar o mesmo ar daquele sonho encarnado. Sem pedir, ela tirou um pedaço do meu chocolate e começou a comer enquanto olhava a paisagem pela janela. Achei aquilo ousado, mas interessante, e também me dava a oportunidade de iniciar uma conversa. Eu não conversava com uma garota desde... bem, você deve imaginar.
- Você é francesa? - perguntei.
Sem virar a cabeça, ela apenas me olhou de canto de olho e respondeu:
- Na!
Comecei a acreditar que aquela conversa não ia a lugar nenhum, senti que eu a estava incomodando. Mas diabos! Ela transmitia tanta paz, mas seus atos pareciam de alguém tão arrogante. Eu estava confuso. Eu estava intrigado com aquela figura, então decidi insistir:
- Eu poderia saber de onde você é, então?
- Não sei.
- Não sabe? Você não sabe de onde é?
- Não me lembro.
- Como você pode não se lembrar de onde veio? Como é possível?
Ela então virou seu rosto completamente em minha direção. Eu finalmente pude ver cada traço daquela bela face. Finalmente, mostrando um pouco de simpatia, enquanto segurava um pedaço de meu chocolate na altura do rosto, ela respondeu com um leve sorriso:
- Comecei esta jornada há tanto tempo, que não me lembro onde comecei. De fato, não me importa mais.
- Certo... Quer dizer que você está viajando toda a Europa.
- O mundo.
- Certo...
- ...
Fiquei desconsertado, não sabia como quebrar aquele silêncio desagradável, e a viagem duraria duas horas. Finalmente completei:
- Acredito que você não vai perguntar de onde sou.
- Imagino que você tenha nascido neste planeta, certo?
Eu não esperava uma pergunta dessas. Meio exitante, eu respondi:
- S-sim.
- Ótimo, isso significa que somos do mesmo lugar. Quer chocolate?