O Céu de Ícaro

Porque o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu

A história da borboleta que se apaixonou por um soco

Antes de mais nada, tudo.

Este post é uma homenagem ao meu poeta contemporâneo preferido: Michel Melamed ponto

Pisciniano, judeu, poeta, carioca e correntista do Itaú.



Quem me conhece sabe que sou devoto de São Fernando Pessoa(s), que faço minhas preces para São Byron e que o beato Gregório de Matos intercede por mim, mas nenhum desses, por mais geniais que fosse, foi pisciano, judeu, poeta, carioca e correntista do Itaú. Sim, Michel é tudo isso. E muito mais. Ele é um daqueles caras que é tão inteligente que dá raiva. Parece ser a pessoa que tem uma resposta para tudo.

Meu primeiro contato com a obra dele foi quando um amigo me emprestou o livro Regurgitofagia. Aquele livro foi um soco no dedão do pé da minha sanidade. É um livro surreal, estranho, emocionante, confuso, esclarecedor, questionador, interativo que causa impacto mesmo na pessoa que não entender uma só palavra do que está escrito. O livro já impressiona pela sua formatação diferente, impossível de descrever em palavras, e segue impressionando pela interatividade com o leitor. Em muito momentos, o livro o convida a pegar um lápis e rabiscá-lo, escrever, exercitar sua imaginação. É mágico.
O que mais impressiona, é saber que o livro inspirou uma peça - uma das melhores já feitas - que é a transformação do próprio em atos. Imagine ver uma peça de teatro totalmente fora dos padrões convencionais e depois ler um livro que é exatamente igual à peça, em seus mínimos detalhes. Pois é, coisa de Melamed.

A peça em questão (cujo trecho está abaixo), faz parte de uma trilogia, com Dinheiro Grátis e Homemúsica como continuação. Em Regurgitofagia, Michel fica sozinho no centro do palco ligado a eletrodos, e cada reação da platéia - risos, palmas, tosse - provocam um choque no ator, o que só causa uma aflição maior, pois dá vontade de rir ou aplaudir a cada choque, e isso só causa mais choque, o que te faz suspirar de aflição, provocando mais choque.


"Antes de mais nada, tudo. Porque, diferentemente dos ávidos antropófagos, já garantimos coisas demais. Por isso, se me falam ‘ponto’, pode ser final, g, nevrálgico, de encontro, de macumba, facultativo, de crochê, de ônibus, pacífico, de equilíbrio, aquele cara que segura a fecha dos atores, de exclamação, interrogação, de ebulição, morto, zero... Por isso, se me falam ‘dando’, pode ser dando zebra, dando de ombros, as costas, dando mancada, a volta por cima, mole, certo, a bunda, na vista, bandeira, tudo errado.. Essa é a história da borboleta que se apaixonou por um soco. O amor platônico de uma borboleta por um soco . E essa eterna sensação de estar comprando dinheiro, fritando frigideira, cavando barco, fotografando foto, amando a bunda, odiando o ódio, trocando o que já se tem pelo que ainda se tem. Jáinda. Não se fazem mais antigamentes como futuramentes ".

Vale também conferir sua genialidade em um texto mais antigo:


Há tanto tempo não há tempo para tanto
Miro o muro e vejo o eixo central dessa galáxia inóspita
Miro o belo e meço meramente o mero
Homero vai à luta
O homem vai à luta com Homero
Meramente homem
A união faz a força
E a força faz o que?
A força faz a forca
A força vai a forca

A foca bate palma e sai de foco
O oco foca e fica
A oca fica e faca
Foucault finca a faca
O inca cai, quebra e vira totem
E tem pressa...
E o trem passa
Eu hei de entender o que se passa
Se passar um pouco mais perto de mim
Há tanto tempo não há tempo pra tanto
Há tanto que tento

E troco trovas por momentâneos beijos de amor
Pois quem sabe se sobe ou se desce
Se manda ou obedece
Se emana ou esquece
Ou irmana prece
Quem sabe se levanta ou cai
Se entra ou sai
Se eu se ai
Se bem foi ou vai
Quem sabe se segura ou solta
Quem sabe se vai ou ou volta
Quem sabe se sabe ou apenas quis saber

Porque deveria e há de saber
Quem sabe de quê?
Ou quem quer que saiba
Que saber é ver o não saber
Que beber é só se embriagar
Que comer é só se fortalecer
E que fortaleza também cai
Se eu soubesse que sabia
Não saberia o que fazer
Pois quem caminha

Vai ou vem
Dependendo de quem olha
Ou tenta olhar alguém
Pois se certo fosse o olhar
Olharia o incerto
O acerto se faria
Como deveria ser ou haveria de estar

Se fosse o querer acontecer e transformar
A verdade só quem sabe é a mentira
Que por sua vez sempre mente

Simplesmente
Com um corte no pulso que pulsava
Um pouco de vida que vivia nesse mero pulso
Onde estão os índios?
E os filantrópicos?
E os filatelistas?
E os caçadores de borboletas?
E as borboletas?

Os filósofos se escondem nos bares
O ar começa a ser vendido
Compre já!
Últimos estoques
Estou farto de farpas, furtos e fortes
Meus pés me levam até o para-peito de um prédio
Meu peito pára na calçada da rua mais próxima
Mas o show tem que continuar
A América metricamente se recente de tudo que fez, faz e fará
Planeta Terra
Planeta amputado
Sepultando-se sepultado
Se putas ou putanas

Sepultem esse veneno
E eu aqui tentando minar
Nanir
Ir não vir
Ser não ver
Sou, som, só
O hormônio do meu homônimo
Não é igual ao meu
Choro nas horas vagas
E vago um coração
Alguém quer?

E não pára por aí. Michel ainda dirigiu e atuou em duas excelentes séries da Rede Globo, "Capitu" e "Afinal, o que querem as mulheres?".

Afinal, citando outro poeta que adoro: "a poesia prevalece".