O Céu de Ícaro

Porque o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu

A noite mais escura

Ele estava sentado em sua poltrona enquanto lia um livro e ouvia jazz. Aquela noite estava particularmente escura e fria. A lua parecia pressentir o que aconteceria aquela noite e resolveu não aparecer. O sopro do vento entre as árvores produzia um som fantasmagórico, mas aquilo não o perturbava mais, sua vida já estava tão terrivelmente desgraçada que aquilo parecia ser uma trilha sonora de seus dias.

Já passava das quatro da manhã quando decidiu dormir. Tudo estava tão terrivelmente errado em sua vida que seu único conforto era saber que poderia esquecer quem era enquanto dormia, e que, se tivesse sorte, nunca mais acordaria.

Levantou, bebeu água, apagou a luz, fumou o último cigarro e se dirigiu aos seus aposentos. Enquanto caminhava, olhou com tristeza para as árvores que balançavam lá fora. Sua tristeza só aumentou quando viu sua imagem refletida no vidro da janela: um homem de meia idade, quase careca, roupa surrada, rosto carrancudo... Onde teria errado? Em que momento de sua vida as pessoas começaram a se afastar? Por que afastou e feriu todos ao seu redor? Hoje, sozinho, sentia o peso da solidão em seus ombros curvados. Seu orgulho - aquele que o fez machucar quem o queria bem - deu lugar a uma melancolia quase física, tão pesada que doía, parecia preencher cada pedaço de seu corpo cansado e velho.

Afastou o olhar da janela pesarosamente, ficou cabisbaixo e começou a caminhar até seu quarto. Dois passos depois sentiu um calafrio na espinha. Sabia que não era o frio, era algo diferente, algo mais assustador, algo mais...
Levantou os olhos e viu algo que nunca sequer havia imaginado antes, e duvidava que qualquer pessoa viva o tenha. A imagem que se encontrava diante dele o deixou paralisado, não possuía forças físicas ou mentais para esboçar qualquer reação. Diante de si estava uma silhueta enorme, talvez o dobro de seu tamanho, completamente negra, com algo que pareciam duas asas negras saindo de suas costas.

Completamente paralisado, observou catatônico aquele ser que, certamente, não era humano, foi quando um relâmpago irrompeu silencioso, revelando a face negra e desfigurada e seus olhos completamente negros, não era possível ver qualquer outra cor em todo o seu globo ocular, parecia ser completamente negro em todo seu diâmetro, assim como o era todo o resto de seu corpo. Quando o trovão finalmente chegou, menos de um segundo depois, o som foi ensurdecedor, assustando-o e fazendo-o fechar os olhos de medo. 

Ao abrir seus olhos, os olhos negros não estavam lá, nem as asas, nem a face... a criatura não estava mais lá, nem sua casa. Nada mais estava no lugar. Ele não havia sentido nenhum movimento, mas de repente estava em um lugar completamente diferente. Era uma floresta de árvores negras e mortas, uma bruma pálida e um frio que atravessava o casaco e doía nos ossos. 

Sentiu sua respiração parar quando alguém tocou seu ombro. Olhou vagarosamente para a mão daquele que o tocava e viu unhas pontiagudas em uma mão que mais parecia uma sombra. Estaria sonhando? Estremeceu, respirou fundo, tentou se acalmar e olhou para trás. Lá estava ele. A mão pertencia ao ser que o havia visitado em sua casa. Sentiu seu coração parar, sua boca ficou seca, tremia. Inspirou um fôlego profundo e tentou dizer algo. Nada saiu.

A criatura abriu a boca e, quando falou, o som de mil vozes angustiadas pareciam reverberar de suas cordas vocais:

- Minha aparência é um reflexo de seus atos. Sou como as pessoas o viam, todas elas, sou tudo somado.

- Q-Quem é você?

- Seu dia chegou. Hoje sua linha do tempo chegou ao fim. Este é o final de tudo para ti.

- Eu morri? É isso que você está me dizendo? Eu estou morto?

- Sim. Sou o guardião da transição. Eu fui buscá-lo para que você possa fazer a travessia.

Aquilo o confortou um pouco, não como ele pensava que seria ao morrer, mas já não estava amedrontado como antes.

- O que é você, um anjo ou um demônio?

As mil vozes pareceram ter um tom irônico ao responder:

- Isso você decidirá. Após lhe contar o seu destino, você irá decidir se sou um ou outro.

O medo, misturado à ansiedade o fez tremer novamente.

- O que há do outro lado? Qual é meu destino?

- Em instantes você nascerá novamente, viverá novamente, amará novamente, exatamente como já o fez, você viverá sua própria vida novamente, tudo igual, nos mínimos detalhes. Tudo o que você fez, fará novamente, todos os que você machucou, machucará novamente, você viverá uma reprise de sua própria vida.

- Não!