O Céu de Ícaro

Porque o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu

Quando monstros estendem a mão



Essa história aconteceu há uns dez anos. Pode parecer bobagem para alguns, mas foi extremamente marcante para mim.
Na época eu estudava no SENAI pela manhã e saía direto para o estágio durante a tarde. Eu fazia esse percurso de ônibus com outros colegas. Nós costumávamos sentar no fundo, pois era mais fácil para descer e, bem, éramos adolescentes, era o melhor lugar pra sentar (na verdade, ainda hoje acho isso).
Naquele dia, acabei ficando sozinho na poltrona logo à frente da porta de saída, o que foi crucial para para a concretização da história (sabe, querido leitor, eu acredito que cada evento de nossa vida, por menor que seja, é uma chave para algo maior no futuro, acredito que no momento em que tomamos uma decisão, como a minha de sentar naquela poltrona, somos levados a uma realidade que nos fará acumular uma série de experiência que, em algum momento, serão de extrema relevância).
Faltando uns dois pontos para chegar em meu destino, um homem deficiente subiu pela porta de trás. Ele tinha as pernas atrofiadas e se locomovia com certa dificuldade com a ajuda de duas muletas. Ao ver o homem subindo, eu, com uma inocência quase infantil, me levantei do lugar. Ele parou um pouco, olhou um pouco estranho para mim e se sentou. Eu, ainda sem me dar conta da magnitude do meu ato, me sentei de volta ao seu lado e falei: "É que eu desço daqui a pouco".
Foi nesse momento, leitor, que a bomba da emoção foi jogada no meu colo e eu finalmente percebi o que havia feito.
O homem olhou para mim com lágrima nos olhos e, sem dizer uma palavra, simplesmente virou-se para mim e me abraçou. Foi ali, naquele momento, que percebi o quanto a minha atitude banal e totalmente indiferente significou para aquele homem. Devido ao seu problema, ele provavelmente era tratado como um coitado pela rua e certamente visto como uma aberração. Convenhamos, todos nós olhamos diferente, alguns com nojo, outros com penas, para pessoas com algum problema. O simples fato de tê-lo tratado como uma pessoa normal, de ter apenas oferecido um assento que seria mais cômodo para ele e para mim, fez aquele sujeito se sentir bem. Ele certamente pensou que, quando me levantei, eu o havia feito por asco dele. Ele com certeza achou que eu prosseguiria a viagem em pé, apenas para não ficar perto dele, mas minha inocência juvenil o desarmou. Provavelmente, poucas pessoas, se alguma, já havia feito isso por ele, e foi justamente isso que me marcou, o quanto eu posso ter feito a diferença na vida dele.
Não estou falando aqui que sou a madre Teresa, como disse, fiz o que fiz inocentemente, talvez pelo cansaço. Talvez eu tivesse agido diferente se fosse uma segunda-feira pela manhã, não sei, mas naquele momento, aquele simples gesto mudou muita coisa.

Depois desse fato, comecei a pensar em duas coisas:

1) Muitas pessoas sonham com o dia em que possam ser tratadas como "apenas mais um".

e

2) A que ponto nós, como sociedade, chegamos, no que diz respeito a tratar bem o próximo? Vivemos em estado de eterna desconfiança, sempre esperando o pior dos outros. Claro que a evolução manteve esse mecanismo para que pudéssemos sobreviver, mas isso hoje deveria ser desnecessário. Nós mal falamos com as pessoas na rua, mal interagimos, quase nunca escutamos as histórias fantásticas que se escondem em cada parada de ônibus, em cada fila de supermercado, em cada esquina... Nos isolamos tanto em nosso casulo que, quando um estranho se levanta em um ônibus sem fazer julgamentos, lágrimas de emoção caem.

Estamos tão acostumados a combater monstros, que quando um destes ignora sua condição de monstro e estende a mão, nos desarmamos e as lágrimas de tornam inevitáveis.